Por Felipe Viana
HOMILIA DO PAPA
BENTO XVI
Basílica
Vaticana
Sábado Santo, 7 de Abril de 2012
Queridos irmãos e irmãs!
A Páscoa é a festa da nova criação. Jesus ressuscitou e nunca mais morre.
Arrombou a porta que dá para uma nova vida, que já não conhece doença nem morte.
Assumiu o homem no próprio Deus. «A carne e o sangue não podem herdar o Reino de
Deus»: dissera São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios (15, 50). E
todavia Tertuliano, escritor eclesiástico do século III, a propósito da
ressurreição de Cristo e da nossa ressurreição, não temera escrever: «Tende
confiança, carne e sangue! Graças a Cristo, adquiristes um lugar no Céu e no
Reino de Deus» (CCL II, 994). Abriu-se uma nova dimensão para o homem.
A criação tornou-se maior e mais vasta. A Páscoa é o dia duma nova criação, mas
por isso mesmo, neste dia, a Igreja começa a liturgia apresentando-nos a criação
antiga, para aprendermos a compreender bem a nova.
E assim, na Vigília Pascal, a
Liturgia da Palavra começa pela narração da criação do mundo. A propósito desta
e no contexto da liturgia deste dia, são particularmente importantes duas
coisas. Em primeiro lugar, a criação é apresentada como uma totalidade da qual
faz parte o fenômeno do tempo. Os sete dias são imagem duma totalidade que se
desenvolve no tempo, aparecendo os dias ordenados até ao sétimo, o dia da
liberdade de todas as criaturas para Deus e de umas para as outras. Por
conseguinte, a criação está orientada para a comunhão entre Deus e a criatura; a
criação existe para que haja um espaço de resposta à glória imensa de Deus, um
encontro de amor e liberdade. Em segundo lugar, na Vigília Pascal, a Igreja fixa
a atenção sobretudo na primeira frase da narração da criação: «Deus disse:
“Faça-se a luz”!» (Gn 1, 3).
Emblematicamente, a narração da criação
começa pela criação da luz. O sol e a lua são criados somente no quarto dia. A
narração da criação designa-os como fontes de luz, que Deus colocou no
firmamento do céu. Deste modo, priva-os propositalmente do caráter divino que as
grandes religiões lhes tinham atribuído. Não! Não são deuses de modo algum; são
corpos luminosos, criados pelo único Deus. Entretanto já os precedera a luz,
pela qual a glória de Deus se reflete na natureza do ser que é criado.
Que pretende a narração da criação dizer com isto? A luz torna possível a
vida; torna possível o encontro; torna possível a comunicação; torna possível o
conhecimento, o acesso à realidade, à verdade. E, tornando possível o
conhecimento, possibilita a liberdade e o progresso. O mal esconde-se. Por
conseguinte, a luz aparece também como expressão do bem, que é luminosidade e
cria luminosidade. É de dia que podemos trabalhar. O fato de Deus ter criado a
luz significa que Ele criou o mundo como espaço de conhecimento e de verdade,
espaço de encontro e de liberdade, espaço do bem e do amor. A matéria-prima do
mundo é boa; o próprio ser é bom. E o mal não vem do ser que é criado por Deus,
mas existe em virtude da sua negação. É o «não».
Na Páscoa, ao amanhecer do primeiro dia da semana, Deus disse novamente:
«Faça-se a luz!». Antes tinham vindo a noite do Monte das Oliveiras, o eclipse
solar da paixão e morte de Jesus, a noite do sepulcro. Mas, agora, é de novo o
primeiro dia; a criação recomeça inteiramente nova. «Faça-se a luz!»: disse
Deus. «E a luz foi feita». Jesus ressuscita do sepulcro. A vida é mais forte que
a morte. O bem é mais forte que o mal. O amor é mais forte que o ódio. A verdade
é mais forte que a mentira. A escuridão dos dias anteriores dissipou-se no
momento em que Jesus ressuscita do sepulcro e Se torna, Ele mesmo, pura luz de
Deus. Isto, porém, não se refere somente a Ele, nem se refere apenas à escuridão
daqueles dias. Com a ressurreição de Jesus, a própria luz é novamente criada.
Ele atrai-nos a todos, levando-nos atrás de Si para a nova vida da ressurreição
e vence toda a forma de escuridão. Ele é o novo dia de Deus, que vale para todos
nós.
Mas isto, como pode acontecer? Como é possível chegar tudo isto até nós, de
tal modo que não se reduza a meras palavras, mas se torne uma realidade que nos
envolve? Por meio do sacramento do Batismo e da profissão da fé, o Senhor
construiu uma ponte até nós, pela qual o novo dia nos alcança. No Batismo, o
Senhor diz a quem o recebe: Fiat lux – faça-se a luz. O novo dia, o dia
da vida indestrutível chega também a nós. Cristo toma-te pela mão. Daqui para a
frente, serás sustentado por Ele e assim entrarás na luz, na vida verdadeira.
Por isso, a Igreja antiga designou o Batismo como «photismos –
iluminação».
Porquê? A escuridão que verdadeiramente ameaça o homem é o fato de que ele é,
na verdade, capaz de ver e investigar as coisas palpáveis, materiais, mas não vê
para onde vai o mundo e donde o mesmo venha; para onde vai a sua própria vida; o
que é o bem e o que é o mal. Esta escuridão acerca de Deus e a escuridão acerca
dos valores são a verdadeira ameaça para a nossa existência e para o mundo em
geral. Se Deus e os valores, a diferença entre o bem e o mal permanecem na
escuridão, então todas as outras iluminações, que nos dão um poder
verdadeiramente incrível, deixam de constituir somente progressos, mas passam a
ser simultaneamente ameaças que nos põem em perigo a nós e ao mundo. Hoje
podemos iluminar as nossas cidades de modo tão deslumbrante que as estrelas do
céu deixam de ser visíveis. Porventura não temos aqui uma imagem da problemática
que toca o nosso ser iluminado? Nas coisas materiais, sabemos e podemos
incrivelmente tanto, mas naquilo que está para além disto, como Deus e o bem, já
não o conseguimos individuar. Para isto serve a fé, que nos mostra a luz de
Deus, a verdadeira iluminação: aquela é uma irrupção da luz de Deus no nosso
mundo, uma abertura dos nossos olhos à verdadeira luz.
Por fim, queridos amigos, queria ainda acrescentar um pensamento sobre a luz
e a iluminação. Na Vigília Pascal, a noite da nova criação, a Igreja apresenta o
mistério da luz com um símbolo muito particular e humilde: o círio pascal.
Trata-se de uma luz que vive em virtude do sacrifício: a vela ilumina,
consumindo-se a si mesma; dá luz, dando-se a si mesma. Este é um modo
maravilhoso de representar o mistério pascal de Cristo, que Se dá a Si mesmo e
assim dá a grande luz. Uma segunda idéia, que a reflexão sobre luz da vela nos
sugere, deriva do fato de a mesma ser fogo. Ora, o fogo é força que plasma o
mundo, poder que transforma; e o fogo dá calor. E aqui se torna novamente
visível o mistério de Cristo: Ele, a luz, é fogo; é chama que queima o mal,
transformando assim o mundo e a nós mesmos. «Quem está perto de Mim, está perto
do fogo»: assim reza um dito de Jesus, que nos foi transmitido por Orígenes. E
este fogo é ao mesmo tempo calor: não uma luz fria, mas uma luz na qual vêm ao
nosso encontro o calor e a bondade de Deus.
O Precónio, o grande hino que o diácono canta ao início da Liturgia Pascal,
de modo muito discreto chama a nossa atenção ainda para outro aspecto.
Lembra-nos que o material do círio se fica a dever, em primeiro lugar, ao
trabalho das abelhas; e, assim, entra em cena a criação inteira. No círio, a
criação torna-se portadora de luz. Mas, segundo o pensamento dos Padres, temos
aí também uma alusão implícita à Igreja. Nesta, a cooperação da comunidade viva
dos fiéis é parecida com o trabalho das abelhas; constrói a comunidade da luz.
Assim podemos ver, no círio, também um apelo dirigido a nós mesmos e à nossa
comunhão com a comunidade da Igreja, que existe para que a luz de Cristo possa
iluminar o mundo.
Neste momento, peçamos ao Senhor que nos faça sentir a alegria da sua luz, de
modo que nós mesmos nos tornemos portadores da sua luz, para que, através da
Igreja, o esplendor do rosto de Cristo entre no mundo (cf. LG 1).
Fonte: Boletim diário da Santa Sé